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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Televisão e religião

Por: Domingos Zamagna (*)

Há dias, algumas das nossas maiores autoridades eclesiásticas fizeram um pronunciamento a respeito da falta de ética na televisão brasileira. Como sempre, é claro que os católicos recebemos esse pronunciamento com respeito, vendo nele um sério esforço de colaboração para a melhoria do nível de nossa televisão. Mesmo porque essas autoridades verbalizavam o que é pensamento e indignação de milhões de lares brasileiros.
A reação das emissoras não tardou, umas dizendo que não tinham nada a ver com o assunto, outra só faltou dizer que sua programação  é destinada à lua etc. Mas houve também quem dissesse que seus realities-shows são lastreados no pluralismo ideológico-cultural-religioso, que é leiga e não segue nenhum preceito de religião. Que coisa fantástica!
O refinado intelectual que redigiu o texto de defesa da emissora, que não acenou sequer com a possibilidade de alguma verdade no que dizia o pronunciamento da Igreja, certamente teria ainda muito a aprender sobre o sentido dos vocábulos “leigo” e “religião”. No Brasil, toda vez que instituições praticam atentados contra a ética, toda vez que as organizações beiram práticas criminais, costumam dizer que são leigas. Está havendo uma falaciosa ressemantização de alguns vocábulos, de tal modo que, na cabeça de muita gente, “laicidade” vai virar sinônimo de bandidagem. Porque sou “leigo”, estarei acima do bem e do mal: serei a favor do aborto, da eutanásia, da pena de morte, do mensalão, do aumento astronômico do salário de parlamentares, do aumento ridículo do salário mínimo etc. Se alguma Igreja protestar contra esse préstito de sem-vergonhice, será estigmatizada – em horário nobre – de alienada, atrasada, anacrônica.
Mais pitoresco, para não dizer trágico, foi o modo como se pretendeu usar a expressão “preceito religioso”. As religiões, por incrível que pareça, apesar do enorme peso de milenares rotinas, são capazes de evoluir, e colocar-se a serviço do povo. Quem tiver um pouco de espírito e prática de pesquisa, facilmente há de constatar que a Igreja Católica – para falar apenas do que conheço mais de perto – tem feito uma autocrítica, revisto seus procedimentos, constatado seus erros, não só pedindo desculpas por seus pecados, mas também praticando reparação por seus crimes. Se houve momentos de nossa história em que fomos um peso morto, há muito que os cristãos vêm procurando cada vez mais se modelar na Igreja dos profetas, dos apóstolos, das santas e santos mártires. Por palavras, mas sobretudo pelo testemunho de conversão e serviço, querem se identificar com a pessoa e a missão de Jesus Cristo, o Salvador.
Ora, algumas das práticas das quais as verdadeiras religiões se desvencilharam, alguns dos cacoetes e penduricalhos típicos das religiões que não souberam se renovar, estão cada vez mais sendo absorvidos por instituições que se apresentam como “leigas”. Para quem – como eu – já passou por isso, ou quem não se deixa impressionar pelas aparências, é difícil imaginar ambientes mais hierarquizados do que certas centrais de comunicação, mais dogmáticos, mais ritualísticos, mais subservientes ao deus “Mamon”, para o qual são exigidos sacrifícios verdadeiramente sangrentos, praticando milagres de manipulação, num clima de indisfarçável infalibilidade.
Digam-nos o que quiserem, mas não nos digam que não se pautam por preceitos “religiosos”. São os novos “sacerdotes”, estão desenvolvendo uma “religião” graúda, que não abre mão de nada daquilo que as religiões, a duras penas, estão aprendendo a relativizar.
Podemos tirar várias conclusões do episódio. Limito-me a uma: apesar de a Igreja ainda abrigar projetos neoconservadores, vamos tomar cuidado para que nossa religião não se deixe seduzir pelos ouropéis da imagem, não sejamos mais reprodutores de realidades das quais a história conseguiu nos libertar. Vamos concentrar o que temos de melhor para servir aos pobres, e não fazer deles um instrumento de vertiginoso enriquecimento através da sedução de feérica pirotecnia. Isso não nos conduzirá jamais à realidade (reality), mas sim ao ópio da alienação e, pelo fetiche do show, do exibicionismo, à desvalorização da vida. O que herdamos de Jesus é que lutemos pela vida, e vida em abundância. O Sermão da Montanha ensina a viver e não a representar.
Que coisa mais medonha seria olhar para uma Igreja e vê-la mimetizando os carcomidos subprodutos do universo novidadeiro da televisão; ou olhar para a televisão e vê-la representando o universo da velha e superada religião.
(*) Jornalista e professor de Filosofia em São Paulo.

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